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retrato que fiz ontem

retrato que fiz ontem

2024-04-20

isso é um retrato. é um retrato de uma pessoa que tem dor crônica. é um retrato escrito porque escrever é a forma menos dolorida de ilustrar. queria desenhar, ou pintar, em uma tela a imagem de um saco de ossos que quem passa o olho não consegue decidir na mente se é ou não uma pessoa. o saco tem olhos assustados, encarando algo acima -- encarando quase tudo, pois está no chão. o cenário ao redor é uma noite escura. o saco de ossos está a duvidar, junto com sua audiência, se ele é pessoa também.

o retrato é uma manifestação de dor crônica, debilitante. dor que mostra, da forma mais cruel possível, que viver é movimentar. eu quero levantar da cama, quero ajudar minha irmã, quero respirar fundo. mas eu não consigo, tudo dói.

parada parece errado estar viv. eu não posso fazer nada. não posso ajudar ninguém, não posso cuidar de mim, não posso ter agência. quero fazer arte, pintar um retrato de um saco de ossos que a audiência não sabe se é humano ou não. mas não posso, porque dói. tomei quatro remédios diferentes e agora eu consigo digitar no celular, mexendo só uma mão. tenho que pensar em como fazer doer o mínimo possível. os remédios ajudam a manter os olhos abertos, sem lágrimas de dor, mas remédios não são milagres. queria ir beber água, mas não quero sentir a dor de novo. é impossível se sentir gente quando sua dor te nega a saciação da sede. comi pouco hoje pois a dor também nega a saciação da fome. é uma tortura levar meu braço até a altura da minha boca. dor te nega agência e até as saciações mais básicas. dor te leva a crer que é errado você estar viva e não há argumento no mundo que te convençam do contrário, não numa sociedade que te obriga a vender seu corpo para o trabalho. meu corpo é quase inútil, logo sou inútil também. a dor trás a tristeza de um futuro onde a fome virá ou por não ter ido trabalhar ou por ter trabalhado demais e depois não conseguir levantar. a dor debilita mais um pouco, dessa vez o alvo foi minha estima. eu olho para cima e imagino alguém me olhando de longe, paralelamente. me imagino dentro de um retrato, com os olhos assustados. me imagino implorando para que minha audiência me veja como humana, porque eu não consigo ver.

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escrevi isso em 19 de abril, em 20 de abril eu comecei a editar em editei em html e não consegui deixar do jeito que queria e publiquei dessa forma aqui. só as 22:50 do dia 23 eu achei que consegui fazer o que eu queria, mas não consegui jdckljdhfkl

~isabé